O manto mágico dos índios tupinambás foi retomado em uma saga de lances marcados por revelações. Ele é um objeto sagrado e, durante o período de colonização, passou a constituir coleções reais, levado pelos europeus. Em 2018, Glicéria Tupinambá, 39 anos, visitou a França, convidada para falar em um encontro sobre os não humanos, os encantados, os espíritos da floresta. Ficou impactada ao ver, pela primeira vez, um manto tupinambá: “O manto me falou que teria que passar a existir e viver em movimento”, lembra Glicéria.
Glicéria veio a Brasília para participar da Marcha das mulheres indígenas contra a tese do Marco Temporal e em defesa da vida. Mas ela aproveitou a estada para inaugurar a exposição Kwá yapé turusú yuriri assojaba tupinambá (Essa é a grande volta do manto tupinambá), em cartaz na Sala Galeria Fayga Ostrower, na Funarte Brasília, até o dia 17 de outubro.
A mostra foi contemplada com o Prêmio Funarte Artes Visuais 2020/2021 e reúne obras dos artistas Edimilson de Almeida Pereira, Fernanda Liberti, Glicéria Tupinambá, Gustavo Caboco, Livia Melzi, Rogério Sganzerla e Sophia Pinheiro. Glicéria estabelece uma conexão entre o manto sagrado, a história colonial e a resistência dos índios na luta pela terra e pela preservação das florestas. Ouçamos, sem intermediários, o que Glicéria tem a dizer sobre o manto sagrado, a relação com a resistência, o marco temporal e o julgamento no STF, que vai definir o destino dos índios e das florestas brasileiras.
Como você passou a produzir mantos?
É uma longa história, mas tentarei sintetizar. Em 2018, eu fui para a França participar de um encontro sobre os não humanos, os encantados. Na França, havia um manto tupinambá. Foi incrível a primeira vez que vi o manto. O manto me falou que teria que passar a existir e viver em movimento. E que ele era feito e vestido por mulheres, as majés, as mulheres tupinambás, conduzidas pelos encantados. Antes, só tinha visto o manto vestido pelos pajés. Quando voltei ao Brasil, o meu irmão, o cacique Babau, recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade da Bahia. Tentamos negociar para que ele usasse o manto, mas não deixaram, tinha de usar a beca. Então, eu disse: vamos fazer o manto tupinambá e, quando sair da colação de grau, a gente coloca o manto. E o que eu tinha projetado se realizou. Em todos os lugares, saíram as fotos com a beca e com o manto sagrado.
Qual a função do manto para os índios tupinambás?
Ele é sagrado. Junta passado, presente e futuro. Só pode ser usado pelos chefes indígenas e com autorização dos encantados. O manto tem de voltar em movimento. A feitura dos mantos é conduzida pelos encantados; é uma cosmotécnica.
O que vocês chamam de os “encantados”?
São os guardiões da natureza, surgem com a criação do mundo. Tupã, a força do trovão, do céu. Jacy, a Lua, clareia o caminho para as mulheres, durante a noite. Coaracy ilumina durante o dia. As Iaras são guardiãs das águas. Caiopora e curupira nos guiam nas matas. Eles zelam para que haja um equilíbrio sobre essas terras.
O que os encantados dizem sobre o que acontece com as florestas neste momento?
Eles estão muito tristes e chorando, sabem que só serão protegidos os que zelam pela natureza. Os outros vão penar e pagar. Mas vem sofrimento para todo mundo. Agrediram os sagrados, os lugares, as pedras, os nossos encantados. Já temos a pandemia. Virá coisa pior; continuam destruindo as nossas matas, tacando fogo, o ego da riqueza é ilusão. O bem-viver é viver em equilíbrio com a natureza.
Existe alguma relação entre o manto sagrado e a luta dos índios pelos seus territórios?
O manto já vem com a força desse levante do povo indígena pelo território. Vem para ser visto pela humanidade, mostra com clareza que é necessário a proteção do meio ambiente para ele existir. Só teremos penas de pássaros com uma mata superpreservada. De 2004 até agora, conseguimos recuperar a nossa fauna, a nossa flora e as nascentes do nosso rio. O manto passou a existir. Usamos as penas do guará para tecer o manto. Ele é um pássaro vermelho de asas pretas. Com a preservação das matas, ele voltou. O manto tem influência política, fortaleceu nossa luta.
Por que as mulheres indígenas resolveram marchar em Brasília?
As mulheres indígenas foram apagadas da história. Foram violentadas, aniquiladas, só servem para mão de obra. Apenas em 2018 tivemos a primeira marcha, essa é a segunda marcha, em 2021. Queremos dar visibilidade à violência nos territórios indígenas. As maiores vítimas da violência são as mulheres e as crianças. O Marco Temporal veio para arrasar. Nós tivemos nossa primeira mulher candidata a vice-presidente da República, Sônia Guajajara. Temos de mostrar para as outras mulheres indígenas que o nosso lugar não é só na cozinha, temos de abrir os horizontes, abrir os espaços. As mulheres indígenas guerreiras estão na linha de frente.
Que interpretação você faz da tese do Marco Temporal?
O marco temporal se dá com aquelas pessoas de alma de
colonizador. Têm vergonha da história do país. O que veio da Europa foi a
escória e a escória continua mandando no país. Aprenderam a história da Europa,
mas têm vergonha do próprio país em que vivem. Querem continuar a colonizar,
finalizar a história dos europeus. Ainda continua a violência, toma outra
proporção, está dentro da política, o índio não temos voz.
Os que defendem a tese do Marco Temporal dizem que, sem ele, os índios podem reinvindicar a ocupação de Copacabana ou do Palácio da Alvorada. O que acha desse argumento?
A gente não pede as terras de Copacabana e não invadimos o STF. Nós queremos a nossa terra para viver e proteger as matas. Se alguém entra na casa do branco, ele chama a polícia. Mas eles invadem as nossas terras e destroem tudo que encontram pela frente. Quando o Brasil vai reconhecer o genocídio dos povos indígenas? Se eles reconhecessem os territórios indígenas, todos seriam mais felizes.
O que você diria para os juízes do STF que julgam a tese do Marco Temporal?
Cumpram a Constituição, sem interpretação, sem manipulação. Basta se ater ao que está escrito no artigo 231. Porque essa lei foi construída com o suor dos povos indígenas. Cabe ao Estado regularizar a nossa terra. Olhe para os índios que foram retirados da aldeia e tiveram apagada a sua memória. É uma dívida que nunca será paga. O nascimento de Cristo criou um novo marco temporal. Mas e esse marco dos brancos? É só para apagar nossa história e roubar nossas terras.
Vocês pensam, em algum momento, desistir da luta?
Nunca, jamais. Se fizéssemos isso, estaríamos desonrando
nossos ancestrais tupinambás. Viver é lutar.
*Com informações do Correio Braziliense
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