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terça-feira, 30 de novembro de 2021

Entrevista - você conhece a camponesa Joana d’Arc acusada de heresia e executada pela Igreja Católica?

Provavelmente, você já ouviu falar sobre Joana D’arc. Mas, talvez, saiba pouco a respeito de quem ela realmente foi e o que fez em seus poucos anos de vida.

A jovem francesa é tão conhecida assim em razão da sua participação na fase final da Guerra dos Cem Anos. Sua trajetória inclui liderança sobre os franceses, vitórias com o exército, acusações de bruxaria, a morte na fogueira em praça pública e também sua canonização pela Igreja católica.

Por ter se tornado santa e padroeira da França, no dia 30 de maio é dedicado para relembrar sua passagem histórica pelo País. Pensando em tudo isso, vamos contar um pouco mais sobre quem ela foi.

Os primeiros anos da vida de Joana d’Arc

Joana d’Arc nasceu por volta de 1412, em um pequeno vilarejo chamado Domrémy, na França. A data de seu nascimento é imprecisa, sendo apenas baseada no seu interrogatório, de 1431, no qual a jovem apontou ter 19 anos.

Filha de Isabelle Romée, Jacques d’Arc foi a caçula entre quatro filhos, cresceu ajudando o pai e os irmãos na lavoura e, ao mesmo tempo, auxiliando a sua mãe a cuidar da casa. A família era bastante religiosa, e, assim, Joana era bem devota e ia bastante à igreja para rezar.

Com o passar dos anos, por volta dos seus 12 anos de idade, a jovem garota convenceu a si mesma de que tinha alguma missão especial em sua vida.

Com aproximadamente 13 anos – conforme apontou em seu julgamento – ela passou a ouvir vozes divinas, que acreditava ser de São Miguel, Santa Margarida e Santa Catarina, os quais, supostamente, estariam indicando a missão divina que Joana tinha: a de salvar a França

Agora, talvez você esteja se perguntando: mas salvar a França de que exatamente?

Tal missão era salvar sua terra da Guerra dos Cem anos. Isso porque Joana d’Arc cresceu enquanto acontecia esse enorme conflito entre a França e a Inglaterra.

E o que foi a Guerra dos Cem Anos?

Entre os anos de 1337 a 1453, a Idade Média vivenciou a sua mais longa guerra, conhecida como Guerra dos Cem Anos – que, apesar do nome, durou 116 anos descontínuos com uma série de disputas.

Esse confronto começou, especificamente, com a disputa pela Coroa francesa, depois de Carlos IV, o rei da França, morrer sem deixar filhos homens. Nesse contexto, o rei da Inglaterra, Eduardo III, que era sobrinho de Carlos IV, acreditava que era herdeiro suficiente para merecer a Coroa. Ao mesmo tempo, o primo de Carlos IV, Filipe de Valois, a partir de uma assembleia, foi escolhido para o trono e era apoiado por parte da nobreza.

A partir disso e das desconfianças e interesses dos dois, a guerra começou. Vários conflitos com disposições diferentes foram travados entre os franceses e ingleses. Contudo, foi na fase final da Guerra que Joana d’Arc teve participação, comandando, inclusive, várias vitórias.

Joana d’Arc e seu papel na Guerra dos Cem Anos

Impulsionada pelas supostas vozes, Joana d’Arc acreditava que tinha duas missões. Uma era salvar sua terra, a França, e a outra era libertar a cidade de Orleans e fazer com que o Carlos VII fosse coroado rei.

Na época, Carlos VII tinha dificuldades em exercer o reinado na França, já que o pai havia o deserdado em 1420 e reconhecido Henrique V de Inglaterra como seu herdeiro e sucessor.

Então, com aproximadamente 15 anos de idade, Joana d’Arc colocou-se em busca de uma conversa com Carlos VII. Para isso, recorreu a Robert de Baudricourt, o capitão da guarnição real em Vaucouleurs. Depois de muita insistência, convenceu Baudricourt do que queria. Ele a concedeu um cavalo, proteção de militares para escoltá-la, e também permitiu que finalmente Joana tivesse a tal conversa com Carlos VII.

Joana cortou o cabelo bem curto, passou a usar vestimentas masculinas e, sem dizer nada aos pais, saiu de casa e foi ao encontro de Carlos VII. Em uma viagem que durou por volta de 11 dias, chegou até Chinon, onde finalmente teve a conversa que tanto queria.

Essa conversa em Chinon é um mistério na História. Mas é evidente que, mesmo que a ideia de uma jovem mulher lutando na guerra parecesse algo inapropriado naquelas circunstâncias, a esperança aparecia na crença de ser algo divino. E foi isso, provavelmente, que comoveu Carlos VII.

A partir de então, Joana passou por uma série de investigações para comprovarem sua integridade e para avaliarem as alegações que ela fazia. Assim, foi examinada por uma comissão de teólogos e também por matronas para verificarem sua castidade.

Depois de muitas provações, ela ainda teve que esperar por um mês para marchar contra os ingleses. E, quando a situação de Orleans se tornou bem pior e mais desesperadora, a jovem foi enviada e assumiu o comando das tropas na batalha.

Por essa conquista, Joana se destaca, como aponta Louis Kossuth:

“Atentem para esta distinção singular e impressionante: desde que a história humana começou a ser escrita, Joana d’Arc foi a única pessoa, entre homens e mulheres, que chegou ao comando supremo das forças militares de uma nação aos dezessete anos de idade.”

A liderança e disciplina de Joana d’Arc

No livro Joana d’Arc, Helen Castor deixa bem claro que a jovem estabeleceu um regime de disciplina aos soldados. Eles se juntaram à missão e causa dela, confessaram-lhe os pecados e abandonaram os velhos costumes, como as prostitutas. Tudo de acordo com o que ela exigia.

Joana d’Arc estabelecia as táticas, estratégias, analisava os suprimentos e fazia cálculos de risco. Tudo isso, conforme apontam os historiadores, fez com que sua liderança fosse, portanto, transformadora. “Em dois meses Joana reparara todos os desastres; reconstruíra, moralizara, disciplinara, transfigurara o exército e reerguera todas as coragens” é o que apresenta Léon Denis.

Dessa forma, em 1429, a jovem d’Arc conseguiu vencer os ingleses na batalha de Orleans. Mesmo com a vitória, sua missão continuava. Joana d’Arc via que, enquanto parte da França estivesse tomada pelas tropas inglesas, o novo rei, Carlos VII, teria dificuldades de assumir o controle de fato.

Contudo, apesar da determinação de Joana, pouco tempo depois, ela foi capturada e condenada à morte.

A fogueira e o fim da jovem líder

No ano de 1430, Joana d’Arc enfrentou um ataque, defendendo a cidade de Compiègne. Alguns historiadores apontam que durante o confronto ela foi jogada de seu cavalo, acidentada e deixada do lado de fora dos portões da cidade. Com isso, por fim, foi capturada pelos borgonheses – um grupo de franceses que apoiavam e se aliavam aos ingleses.

Nesse contexto, Joana ficou encarcerada, passou por muitas prisões, foi a julgamento e recebeu cerca de 70 acusações. Entre elas, apontavam o fato dela se vestir como homem, além de denunciá-la por bruxaria e heresia. Os cidadãos que a capturaram queriam se livrar da jovem e o rei francês não se preocupou com sua libertação.

A respeito disso, Léon Denis supõe que a jovem poderia ter sido resgatada, mas, na época, pouco foi feito:

“O resgate de Joana, quando em poder do conde de Luxemburgo, era possível. Nada fizeram. Havia também a possibilidade de a resgatarem por um golpe de força: os franceses ocupavam Louviers, a pequena distância de Rouen. Conservaram-se imóveis. (…) Poderiam ter recorrido aos protestos da família de Joana, reclamar a apelação para o papa, ou para o Concílio, ameaçar os ingleses de represálias em Talbot e nos outros prisioneiros de guerra, para a salvação da vida da donzela. Nada se tentou!”

Os homens que a encarceravam, decidindo como seria o seu fim, queriam que ela morresse, de certa forma, desonrada. E, por isso, mais tarde, tentaram a convencer de negar sua própria missão, tentando fazer Joana confessar de que não teria recebido nenhuma espécie de orientação divina.

A jovem foi submetida a todo tipo de tratamento ruim e tortura. De todo modo, permaneceu resistindo a tudo e desafiando as autoridades, inclusive voltando a vestir as vestes masculinas – que antes a obrigaram a trocar.

Mais tarde, em 1431, depois de muita resistência da parte de Joana, enfim, houve o pronunciamento da sua sentença de morte. Pois então, em uma manhã de maio, do ano de 1431, aos 19 anos de idade, Joana d’Arc foi levada ao antigo mercado de Rouen e queimada na fogueira, em praça pública.

A canonização de Joana d’Arc

Depois de 20 anos da sua morte, aconteceu um novo julgamento – por parte do Carlos VII -que limpou o nome de Joana. Por volta de 1456, ela foi considerada inocente pelo Papa Calisto III.

Joana d’Arc deixou um legado. Depois de muitos anos, em 1920, a Igreja católica, com o Papa Bento XV, canonizou Joana d’Arc. E ela, por fim, tornou-se padroeira da França.

Ainda hoje, é comemorado – principalmente entre os católicos – o Dia da Santa Joana d’Arc no dia 30 de maio.

Entrevista:

Joana d'Arc é executada pela Igreja Católica

Líder da libertação francesa na Guerra dos Cem Anos, Joana d'Arc foi acusada de heresia e executada pela Igreja Católica, tornando-se um símbolo do nacionalismo francês

De acordo com Flávia Amaral, no século XIX, "o conteúdo religioso da epopeia de Joana é esvaziado para que, em seu lugar, surgisse a heroína laica, patriota e representante legítima do povo francês". 

Após liderar os exércitos franceses até a coroação do rei Carlos VII, a acusação de heresia e execução pela Igreja Católica, no ano de 1431, foi o desfecho da trajetória de Joana d’Arc como um dos maiores símbolos da libertação francesa na Guerra dos Cem Anos.

Sua morte fortaleceu a lenda em torno de sua história, tornando a camponesa um dos maiores símbolos do nacionalismo francês. A força de seu nome levou a própria Igreja Católica, responsável por sua execução, a canonizá-la em 1920.

O contexto político de sua condenação pelo Tribunal Inquisitorial, assim como a associação de sua história com o nacionalismo francês no século XIX, foram analisados em entrevista com a pesquisadora Flávia Aparecida Amaral, doutora em História Social pela FFLCH USP. Confira abaixo:

Serviço de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas  - Universidade de São Paulo - Na história que conhecemos, Joana D'arc, após ser capturada pelos ingleses, foi julgada e condenada à fogueira por feitiçaria. Mas em sua análise, por que mataram Joana D'arc? Quais motivações políticas determinaram sua condenação tanto do lado inglês quanto do próprio rei da França?

Flávia Amaral: Na verdade, Joana d’Arc foi queimada como herege e não como bruxa. Sua condenação se deu em torno de dois pontos essenciais: em primeiro lugar, ela não aceitou a conclusão do Tribunal Inquisitorial, para quem suas visões eram ilusórias e obras do demônio. Ao optar por manter sua convicção na origem divina das vozes que ouvia, Joana não aceita a interpretação da Igreja, sendo por isso considerada insubordinada.

Em segundo lugar, Joana d’Arc usava roupas masculinas próprias para a guerra, algo interditado às mulheres no período medieval. O Tribunal a condena também por esse motivo, considerado um grande escândalo, ato indecente e pecaminoso. Uma vez que ela segue vestindo roupas masculinas, mesmo no cárcere, e não aceita usar os vestidos a ela oferecidos por obediência às vozes que ouvia, foi sentenciada à morte também a partir dessa argumentação

É extremamente complicado separar religião e política na Idade Média. Algo que para nós é concebido como esferas sociais distintas, naquele período, caminhavam juntas e isso não era visto exatamente como um problema. No entanto, o julgamento de Joana d’Arc possui vários vícios de procedimento, o que nos leva a considerar a tendência a um veredicto contra a ré, exatamente pela posição que ocupava no exército francês daquele momento.

De fato, os ingleses queriam retirar Joana d’Arc do cenário público, pois todas as lendas relacionadas aos seus feitos causavam pânico nos seus guerreiros. Não se pode esquecer, que uma parte da nobreza francesa apoiava a ocupação inglesa e ela foi essencial na captura e no julgamento de Joana d’Arc, uma vez que a composição do Tribunal Inquisitorial instaurado contava com inúmeros teólogos da Universidade de Paris.

Podemos dizer que, por parte do rei francês, Carlos VII, levado à coroação pela própria Joana d’Arc, não houve nenhum movimento efetivo para proceder a alguma negociação e/ou libertar Joana do cárcere. Apenas em 1456, vinte e cinco anos após sua execução na fogueira, a Igreja Católica, atendendo a um apelo desse mesmo Carlos VII, revê o processo de condenação a Joana e o anula. O que explica essa ação tardia do rei francês foi o fato de não desejar que seu governo estivesse associado a uma herege queimada viva por determinação da Inquisição. Então, com o objetivo de “limpar a memória” de seu reinado, Carlos VII se empenha diante da Igreja para que Joana fosse inocentada.

Serviço de Comunicação Social: A imagem heroica de Joana D'arc só foi construída séculos depois por uma releitura de sua história. Qual o contexto na França para que isso acontecesse? Existia um projeto de identidade nacional francês?

Flávia Amaral: Na verdade, mesmo durante sua vida Joana d’Arc recebia a caracterização de uma heroína e era considerada como tal, como atestam várias crônicas do período. O que vai mudar, ao longo dos séculos, é o tipo de heroísmo a ser associado a ela.

Se, nos séculos XV, XVI e XVII ele girava em torno do heroísmo feminino bíblico veterotestamentário (Deborah, Judith, Esther), a partir do século XVIII há um novo tipo de interpretação, segundo o qual o heroísmo associado às ações de Joana d’Arc seria causado por um temperamento imbuído de entusiasmo, capaz de realizar ações concretas no nível político, de caráter eminentemente libertador.

Dessa forma, o nacionalismo francês do século XIX pôde associar a trajetória de Joana d’Arc à sua causa essencial da criação de identidade do povo francês que teria como sua grande inspiração uma simples camponesa medieval, que a partir de seu devotamento à pátria pôde enfrentar todos os perigos e romper todas as barreiras para libertar o seu país. Dessa forma, o conteúdo religioso da epopeia de Joana é esvaziado para que, em seu lugar, surgisse a heroína laica, patriota e representante legítima do povo francês.

Com informações:

Paulo Andrade e Lara Tannus

Joana Coelho

Revista Galileu

León Denis: Joana d’Arc médium

Helen Castor: Joana d’Arc

Ronaldo V., Sheila de Castro, Jorge F., Georgina dos Santos: História – Vol. Único

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