Provavelmente, você já ouviu falar sobre Joana D’arc. Mas, talvez,
saiba pouco a respeito de quem ela realmente foi e o que fez em seus poucos
anos de vida.
A jovem francesa é tão conhecida assim em razão da sua
participação na fase final da Guerra dos Cem Anos. Sua trajetória inclui
liderança sobre os franceses, vitórias com o exército, acusações de bruxaria, a
morte na fogueira em praça pública e também sua canonização pela Igreja católica.
Por ter se tornado santa e padroeira da França, no dia 30 de maio é dedicado para relembrar sua passagem histórica pelo País.
Pensando em tudo isso, vamos contar um pouco mais sobre quem ela foi.
Os primeiros anos da vida de Joana d’Arc
Joana d’Arc nasceu por volta de 1412, em um pequeno vilarejo
chamado Domrémy, na França. A data de seu nascimento é imprecisa, sendo apenas
baseada no seu interrogatório, de 1431, no qual a jovem apontou ter 19 anos.
Filha de Isabelle Romée, Jacques d’Arc foi a caçula entre
quatro filhos, cresceu ajudando o pai e os irmãos na lavoura e, ao mesmo tempo,
auxiliando a sua mãe a cuidar da casa. A família era bastante religiosa, e,
assim, Joana era bem devota e ia bastante à igreja para rezar.
Com o passar dos anos, por volta dos seus 12 anos de idade,
a jovem garota convenceu a si mesma de que tinha alguma missão especial em sua
vida.
Com aproximadamente 13 anos – conforme apontou em seu
julgamento – ela passou a ouvir vozes divinas, que acreditava ser de São
Miguel, Santa Margarida e Santa Catarina, os quais, supostamente, estariam
indicando a missão divina que Joana tinha: a de salvar a França
Agora, talvez você esteja se perguntando: mas salvar a
França de que exatamente?
Tal missão era salvar sua terra da Guerra dos Cem anos. Isso
porque Joana d’Arc cresceu enquanto acontecia esse enorme conflito entre a
França e a Inglaterra.
E o que foi a Guerra dos Cem Anos?
Entre os anos de 1337 a 1453, a Idade Média vivenciou a sua
mais longa guerra, conhecida como Guerra dos Cem Anos – que, apesar do nome,
durou 116 anos descontínuos com uma série de disputas.
Esse confronto começou, especificamente, com a disputa pela
Coroa francesa, depois de Carlos IV, o rei da França, morrer sem deixar filhos
homens. Nesse contexto, o rei da Inglaterra, Eduardo III, que era sobrinho de
Carlos IV, acreditava que era herdeiro suficiente para merecer a Coroa. Ao
mesmo tempo, o primo de Carlos IV, Filipe de Valois, a partir de uma
assembleia, foi escolhido para o trono e era apoiado por parte da nobreza.
A partir disso e das desconfianças e interesses dos dois, a
guerra começou. Vários conflitos com disposições diferentes foram travados
entre os franceses e ingleses. Contudo, foi na fase final da Guerra que Joana
d’Arc teve participação, comandando, inclusive, várias vitórias.
Joana d’Arc e seu papel na Guerra dos Cem Anos
Impulsionada pelas supostas vozes, Joana d’Arc acreditava
que tinha duas missões. Uma era salvar sua terra, a França, e a outra era
libertar a cidade de Orleans e fazer com que o Carlos VII fosse coroado rei.
Na época, Carlos VII tinha dificuldades em exercer o reinado
na França, já que o pai havia o deserdado em 1420 e reconhecido Henrique V de
Inglaterra como seu herdeiro e sucessor.
Então, com aproximadamente 15 anos de idade, Joana d’Arc
colocou-se em busca de uma conversa com Carlos VII. Para isso, recorreu a
Robert de Baudricourt, o capitão da guarnição real em Vaucouleurs. Depois de
muita insistência, convenceu Baudricourt do que queria. Ele a concedeu um
cavalo, proteção de militares para escoltá-la, e também permitiu que finalmente
Joana tivesse a tal conversa com Carlos VII.
Joana cortou o cabelo bem curto, passou a usar vestimentas
masculinas e, sem dizer nada aos pais, saiu de casa e foi ao encontro de Carlos
VII. Em uma viagem que durou por volta de 11 dias, chegou até Chinon, onde
finalmente teve a conversa que tanto queria.
Essa conversa em Chinon é um mistério na História. Mas é
evidente que, mesmo que a ideia de uma jovem mulher lutando na guerra parecesse
algo inapropriado naquelas circunstâncias, a esperança aparecia na crença de
ser algo divino. E foi isso, provavelmente, que comoveu Carlos VII.
A partir de então, Joana passou por uma série de
investigações para comprovarem sua integridade e para avaliarem as alegações
que ela fazia. Assim, foi examinada por uma comissão de teólogos e também por
matronas para verificarem sua castidade.
Depois de muitas provações, ela ainda teve que esperar por
um mês para marchar contra os ingleses. E, quando a situação de Orleans se tornou
bem pior e mais desesperadora, a jovem foi enviada e assumiu o comando das
tropas na batalha.
Por essa conquista, Joana se destaca, como aponta Louis
Kossuth:
“Atentem para esta distinção singular e impressionante:
desde que a história humana começou a ser escrita, Joana d’Arc foi a única
pessoa, entre homens e mulheres, que chegou ao comando supremo das forças
militares de uma nação aos dezessete anos de idade.”
A liderança e disciplina de Joana d’Arc
No livro Joana d’Arc, Helen Castor deixa bem claro que a
jovem estabeleceu um regime de disciplina aos soldados. Eles se juntaram à
missão e causa dela, confessaram-lhe os pecados e abandonaram os velhos
costumes, como as prostitutas. Tudo de acordo com o que ela exigia.
Joana d’Arc estabelecia as táticas, estratégias, analisava
os suprimentos e fazia cálculos de risco. Tudo isso, conforme apontam os
historiadores, fez com que sua liderança fosse, portanto, transformadora. “Em
dois meses Joana reparara todos os desastres; reconstruíra, moralizara, disciplinara,
transfigurara o exército e reerguera todas as coragens” é o que apresenta Léon
Denis.
Dessa forma, em 1429, a jovem d’Arc conseguiu vencer os
ingleses na batalha de Orleans. Mesmo com a vitória, sua missão continuava.
Joana d’Arc via que, enquanto parte da França estivesse tomada pelas tropas
inglesas, o novo rei, Carlos VII, teria dificuldades de assumir o controle de
fato.
Contudo, apesar da determinação de Joana, pouco tempo
depois, ela foi capturada e condenada à morte.
A fogueira e o fim da jovem líder
No ano de 1430, Joana d’Arc enfrentou um ataque, defendendo
a cidade de Compiègne. Alguns historiadores apontam que durante o confronto ela
foi jogada de seu cavalo, acidentada e deixada do lado de fora dos portões da
cidade. Com isso, por fim, foi capturada pelos borgonheses – um grupo de
franceses que apoiavam e se aliavam aos ingleses.
Nesse contexto, Joana ficou encarcerada, passou por muitas
prisões, foi a julgamento e recebeu cerca de 70 acusações. Entre elas,
apontavam o fato dela se vestir como homem, além de denunciá-la por bruxaria e
heresia. Os cidadãos que a capturaram queriam se livrar da jovem e o rei
francês não se preocupou com sua libertação.
A respeito disso, Léon Denis supõe que a jovem poderia ter
sido resgatada, mas, na época, pouco foi feito:
“O resgate de Joana, quando em poder do conde de Luxemburgo,
era possível. Nada fizeram. Havia também a possibilidade de a resgatarem por um
golpe de força: os franceses ocupavam Louviers, a pequena distância de Rouen.
Conservaram-se imóveis. (…) Poderiam ter recorrido aos protestos da família de
Joana, reclamar a apelação para o papa, ou para o Concílio, ameaçar os ingleses
de represálias em Talbot e nos outros prisioneiros de guerra, para a salvação
da vida da donzela. Nada se tentou!”
Os homens que a encarceravam, decidindo como seria o seu
fim, queriam que ela morresse, de certa forma, desonrada. E, por isso, mais
tarde, tentaram a convencer de negar sua própria missão, tentando fazer Joana
confessar de que não teria recebido nenhuma espécie de orientação divina.
A jovem foi submetida a todo tipo de tratamento ruim e
tortura. De todo modo, permaneceu resistindo a tudo e desafiando as
autoridades, inclusive voltando a vestir as vestes masculinas – que antes a
obrigaram a trocar.
Mais tarde, em 1431, depois de muita resistência da parte de
Joana, enfim, houve o pronunciamento da sua sentença de morte. Pois então, em
uma manhã de maio, do ano de 1431, aos 19 anos de idade, Joana d’Arc foi levada
ao antigo mercado de Rouen e queimada na fogueira, em praça pública.
A canonização de Joana d’Arc
Depois de 20 anos da sua morte, aconteceu um novo julgamento
– por parte do Carlos VII -que limpou o nome de Joana. Por volta de 1456, ela
foi considerada inocente pelo Papa Calisto III.
Joana d’Arc deixou um legado. Depois de muitos anos, em
1920, a Igreja católica, com o Papa Bento XV, canonizou Joana d’Arc. E ela, por
fim, tornou-se padroeira da França.
Ainda hoje, é comemorado – principalmente entre os católicos
– o Dia da Santa Joana d’Arc no dia 30 de maio.
Entrevista:
Joana d'Arc é executada pela Igreja Católica
Líder da libertação francesa na Guerra dos Cem Anos, Joana
d'Arc foi acusada de heresia e executada pela Igreja Católica, tornando-se um
símbolo do nacionalismo francês
De acordo com Flávia Amaral, no século XIX, "o conteúdo
religioso da epopeia de Joana é esvaziado para que, em seu lugar, surgisse a
heroína laica, patriota e representante legítima do povo francês".
Após liderar os exércitos franceses até a coroação do rei
Carlos VII, a acusação de heresia e execução pela Igreja Católica, no ano de
1431, foi o desfecho da trajetória de Joana d’Arc como um dos maiores símbolos
da libertação francesa na Guerra dos Cem Anos.
Sua morte fortaleceu a lenda em torno de sua história,
tornando a camponesa um dos maiores símbolos do nacionalismo francês. A força
de seu nome levou a própria Igreja Católica, responsável por sua execução, a
canonizá-la em 1920.
O contexto político de sua condenação pelo Tribunal Inquisitorial,
assim como a associação de sua história com o nacionalismo francês no século
XIX, foram analisados em entrevista com a pesquisadora Flávia Aparecida Amaral,
doutora em História Social pela FFLCH USP. Confira abaixo:
Serviço de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo - Na história que conhecemos,
Joana D'arc, após ser capturada pelos ingleses, foi julgada e condenada à
fogueira por feitiçaria. Mas em sua análise, por que mataram Joana D'arc? Quais
motivações políticas determinaram sua condenação tanto do lado inglês quanto do
próprio rei da França?
Flávia Amaral: Na verdade, Joana d’Arc foi queimada como
herege e não como bruxa. Sua condenação se deu em torno de dois pontos
essenciais: em primeiro lugar, ela não aceitou a conclusão do Tribunal
Inquisitorial, para quem suas visões eram ilusórias e obras do demônio. Ao
optar por manter sua convicção na origem divina das vozes que ouvia, Joana não
aceita a interpretação da Igreja, sendo por isso considerada insubordinada.
Em segundo lugar, Joana d’Arc usava roupas masculinas
próprias para a guerra, algo interditado às mulheres no período medieval. O
Tribunal a condena também por esse motivo, considerado um grande escândalo, ato
indecente e pecaminoso. Uma vez que ela segue vestindo roupas masculinas, mesmo
no cárcere, e não aceita usar os vestidos a ela oferecidos por obediência às
vozes que ouvia, foi sentenciada à morte também a partir dessa argumentação
É extremamente complicado separar religião e política na
Idade Média. Algo que para nós é concebido como esferas sociais distintas,
naquele período, caminhavam juntas e isso não era visto exatamente como um
problema. No entanto, o julgamento de Joana d’Arc possui vários vícios de
procedimento, o que nos leva a considerar a tendência a um veredicto contra a
ré, exatamente pela posição que ocupava no exército francês daquele momento.
De fato, os ingleses queriam retirar Joana d’Arc do cenário
público, pois todas as lendas relacionadas aos seus feitos causavam pânico nos
seus guerreiros. Não se pode esquecer, que uma parte da nobreza francesa
apoiava a ocupação inglesa e ela foi essencial na captura e no julgamento de
Joana d’Arc, uma vez que a composição do Tribunal Inquisitorial instaurado
contava com inúmeros teólogos da Universidade de Paris.
Podemos dizer que, por parte do rei francês, Carlos VII,
levado à coroação pela própria Joana d’Arc, não houve nenhum movimento efetivo
para proceder a alguma negociação e/ou libertar Joana do cárcere. Apenas em
1456, vinte e cinco anos após sua execução na fogueira, a Igreja Católica,
atendendo a um apelo desse mesmo Carlos VII, revê o processo de condenação a
Joana e o anula. O que explica essa ação tardia do rei francês foi o fato de
não desejar que seu governo estivesse associado a uma herege queimada viva por
determinação da Inquisição. Então, com o objetivo de “limpar a memória” de seu
reinado, Carlos VII se empenha diante da Igreja para que Joana fosse
inocentada.
Serviço de Comunicação Social: A imagem heroica de Joana
D'arc só foi construída séculos depois por uma releitura de sua história. Qual
o contexto na França para que isso acontecesse? Existia um projeto de
identidade nacional francês?
Flávia Amaral: Na verdade, mesmo durante sua vida Joana
d’Arc recebia a caracterização de uma heroína e era considerada como tal, como
atestam várias crônicas do período. O que vai mudar, ao longo dos séculos, é o
tipo de heroísmo a ser associado a ela.
Se, nos séculos XV, XVI e XVII ele girava em torno do
heroísmo feminino bíblico veterotestamentário (Deborah, Judith, Esther), a
partir do século XVIII há um novo tipo de interpretação, segundo o qual o
heroísmo associado às ações de Joana d’Arc seria causado por um temperamento
imbuído de entusiasmo, capaz de realizar ações concretas no nível político, de
caráter eminentemente libertador.
Dessa forma, o nacionalismo francês do século XIX pôde
associar a trajetória de Joana d’Arc à sua causa essencial da criação de
identidade do povo francês que teria como sua grande inspiração uma simples
camponesa medieval, que a partir de seu devotamento à pátria pôde enfrentar
todos os perigos e romper todas as barreiras para libertar o seu país. Dessa
forma, o conteúdo religioso da epopeia de Joana é esvaziado para que, em seu
lugar, surgisse a heroína laica, patriota e representante legítima do povo
francês.
Com informações:
Paulo Andrade e Lara Tannus
Joana Coelho
Revista Galileu
León Denis: Joana d’Arc médium
Helen Castor: Joana d’Arc
Ronaldo V., Sheila de Castro, Jorge F., Georgina dos Santos:
História – Vol. Único