Araquém Alcântara considera que enfraquecimento da fiscalização ambiental no país é 'crime de lesa humanidade'. Ele planeja três livros e uma mostra simultânea à COP26.
"A fotografia tem um papel importante porque ela é uma
crônica. Quando feita com arte e com informação, é a crônica da beleza e do
extermínio. Eu venho acompanhando o processo de desertificação desse país. É
impressionante."
Em 2021, o fotógrafo Araquém Alcântara completou 70 anos, 50
deles dedicados a preservar em imagens a natureza que o Brasil está destruindo.
Com o que considera um olhar amadurecido para o exercício de
paciência e contemplação que é a fotografia de natureza, Araquém volta à
Amazônia neste fim de agosto para registrar o que é esperada para a ser a pior
temporada de queimadas dos últimos anos, em meio à forte seca que assola o
Brasil e ao enfraquecimento da fiscalização ambiental promovido pela gestão
Jair Bolsonaro (sem partido).
Ao mesmo tempo, planeja para novembro o lançamento do livro comemorativo dos seus 50 anos de profissão; para o primeiro semestre de 2022, um livro sobre a Amazônia voltado ao público europeu; e ainda sem data, um terceiro livro, sobre a fauna brasileira para escolas.
Também prepara uma mostra do seu trabalho para influenciar
os líderes mundiais na tomada de decisões na COP26, a Conferência das Nações
Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021, prevista para acontecer de 31 de
outubro a 12 de novembro em Glasgow, na Escócia.
"Meu trabalho é resistência da memória. Mais de 50% do
Cerrado já foi; restam só migalhas, nem 1% das matas de araucárias; e a
Amazônia começa a entrar no seu ponto de declínio, no seu ponto de savanização
e daqui a pouco não produz mais chuva", diz Araquém à BBC News Brasil.
"O [historiador americano] Warren Dean em determinado momento
se pergunta: 'Não deveria esse holocausto produzido pelo homem ser relatado de
geração para geração? Não deveria o manual de história aprovado pelo Ministério
da Educação começar assim: Crianças, vocês vivem em um deserto, vamos lhes
contar agora como foi que vocês foram deserdadas'", afirma o fotógrafo,
citando o autor de A Ferro e Fogo, clássico da história ambiental sobre a
devastação da Mata Atlântica brasileira.
"É preciso documentar, é preciso mostrar isso, é
preciso gritar por mudança já. Ainda bem que, para isso, eu tenho o texto e a
foto."
'Comecei cantando minha aldeia'
Nascido em Florianópolis, em 1951, Araquém estudou em
colégio interno, num seminário carmelita de Itu, no interior de São Paulo. A
princípio um amante da escrita, se apaixonou pela imagem numa sessão de cinema
promovida em Santos pelo agitador cultural francês Maurice Lègeard.
"Eu era meio 'hippão' — ou totalmente 'hippão' —,
cabeludão à la Jimi Hendrix. Era um janeiro de 1970, eu tinha 17 anos, nem
sabia direito que filme era, e de repente me aconteceu", lembra o
fotógrafo.
"O filme se chamava A Ilha Nua, de Kaneto Shindô, e eu
vendo aquilo ali fui ficando transido no escuro diante de tanta beleza. Quando
acabou o filme, teria uma festa, eu falei à namorada que não iria. 'Eu vou para
a praia, preciso pensar'. Na praia do Gonzaga em Santos, tirei o tênis, fui
andando pela beirada da água e me veio um insight. No dia seguinte, virei fotógrafo."
Ele conta que começou a fotografar com uma câmera
emprestada. "Fui fotografar as putas do cais e os urubus de Santos, tema
do meu primeiro ensaio."
Mas foi o apocalipse da Cubatão dos anos 1980 — cidade que
ficou conhecida como "Vale da Morte", devido à elevada concentração
de poluentes industriais, impossibilitados de se dispersar pelo paredão da
Serra do Mar — que despertou Araquém para a questão ambiental.
"Comecei a cantar minha aldeia. E a minha aldeia, a
baixada santista, tinha Cubatão, o rico 'Vale da Morte'. Eu comecei ali a
entender o que significava sustentabilidade — ou insustentabilidade. Crianças
sem cérebro, a destruição em função da ganância", relata, lembrando das
mais de 30 crianças nascidas mortas devido a anencefalia causada pela exposição
das mães à poluição excessiva.
"Ao tomar uma chuva ácida nas costas, ali eu comecei a
ser um precursor da fotografia de natureza e comecei a minha andança, minha
Odisseia, que dura até hoje."
Desde então, Araquém passou por veículos diversos da
imprensa nacional (os jornais "Cidade de Santos", "O Estado de
S. Paulo", "Jornal da Tarde", "O Globo", "Tribuna
de Santos", a revista "IstoÉ"), fundou sua própria editora — a
Terra Brasil, batizada a partir do livro de mesmo nome, lançado em 1998 e que
desde então já vendeu mais de 130 mil cópias, num país onde a tiragem média das
obras é de 2,5 mil — publicou 58 livros e ganhou mais de 100 prêmios em todo o
mundo.
A velhice e as redes sociais
Araquém vive agora a experiência de envelhecer como um
fotógrafo ainda na ativa.
"Agora, o olhar mais amadurecido já hospeda melhor o
silêncio, a percepção, eu já simplifico as coisas. A fotografia é um grande
exercício de paciência e de contemplação, sobretudo a de natureza. O verdadeiro
fotógrafo de natureza perde 99% de suas fotos, mas aquele 1% corrige tudo sob o
céu", afirma, de forma grandiloquente.
Bastante ativo nas redes sociais, o fotógrafo teve no início
de agosto uma de suas imagens apagadas pelo Instagram. A fotografia mostrava
uma jovem indígena do povo Zo'é dando de mamar ao seu filho, ao lado de uma
outra jovem indígena com os seios à mostra.
A rede social alegou que a imagem ia "contra as
diretrizes da comunidade sobre nudez".
"Acho muito importante para o meu trabalho e o de
outros fotógrafos e artistas a divulgação nas redes sociais. Mas não dá para
entender a falta de critério, a burrice dos algoritmos", diz.
"O Instagram precisa mudar seus filtros e os artistas
precisam se movimentar nesse sentido. O meu grito de repúdio teve esse
objetivo", completa.
Um andarilho na pandemia
Autodefinido como um "fotógrafo andarilho",
Araquém decidiu abandonar o isolamento imposto pela pandemia quando, em meados
de 2020, o Pantanal começou a queimar de forma sem precedentes.
"Quando o Pantanal começou a ser incinerado eu pensei:
'Eu não posso ficar aqui'. E aí me expus", lembra o artista. "Nessa
ida para o Pantanal, no período em que fiquei lá, eu vi a face do horror. Vi
que é possível tudo virar cinza e deserto."
Esse ano, Araquém volta a campo para uma nova temporada na
Amazônia, que deve se estender do fim de agosto a outubro, auge do período de
queimadas na região.
"Estou indo para a Amazônia novamente porque as
perspectivas são catastróficas", afirma.
"A seca está muito severa e o enfraquecimento todo da
fiscalização sugerem mais um ano de recordes", alerta, lembrando que o
maior número de focos de queimadas dos últimos 14 anos foi registrado em junho,
mês que ainda não é de temporada de fogo.
"É fundamental uma moratória. É fundamental parar o desmatamento já e a fotografia tem um papel importante nisso."
As fotografias da viagem de agora devem ser aproveitadas no
livro sobre a Amazônia voltado para o mercado europeu, que deverá ser dividido
em três partes: A Terra, O Homem e O Desequilíbrio — uma referência aos Sertões
de Euclides da Cunha, cuja obra seminal sobre o conflito de Canudos é dividida
entre A Terra, O Homem e A Luta.
Primeiro fotógrafo a documentar todos os parques nacionais
do Brasil, Araquém avalia que a mudança da política ambiental nacional no
período recente é "criminosa".
"É uma coisa catastrófica, um crime de lesa
humanidade", afirma. "A questão fundiária na Amazônia precisa ser
resolvida e é preciso manter a floresta em pé imediatamente. Os governos
ignoram a ganância das quadrilhas de grileiros, em nome de um falso progresso
que só enriquece uma minoria."
"Eu sou uma testemunha ocular dessa barbárie, porque
fotografo a natureza desse país há meio século. E me parece que o [antropólogo,
historiador, sociólogo e escritor] Darcy Ribeiro tinha razão quando ele disse
há vinte anos atrás: 'Só o engajamento total da opinião pública mundial pode
salvar a Amazônia'. Então meu grito é um grito por atitude, minha fotografia
está a serviço da vida."
Com informações do G1 e da BBC News.
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