Professora da EFLCH criticou a mudança na disponibilização dos microdados do censo aos pesquisadores; entre 2019 e 2021 653.499 crianças de até 5 anos saíram da escola segundo o levantamento do Inep
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou no final do último mês de janeiro informações referentes à primeira etapa do Censo Escolar realizado em 2021. A pesquisadora Márcia Aparecida Jacomini, professora do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) analisou parte dessas informações com base na publicação de reportagem sobre o tema veiculada pela Agência Brasil.
Antes dos comentários, a pesquisadora fez referência às mudanças que o Inep realizou recentemente na disponibilização dos microdados do censo aos pesquisadores, cujo argumento foi atender às normas previstas na Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais -- LGPD). “Esta mudança terá repercussão nas pesquisas educacionais e na compreensão da educação escolar, uma vez que algumas informações não estarão mais disponíveis como antes, como informa Posicionamento Público de diversas Entidades, disponível neste link”, alerta Márcia Jacomini.
Ela enfatiza que sua análise é preliminar e terá como base a legislação, isto é, o que o Brasil deveria ter alcançado em termos de atendimento na educação básica e os possíveis efeitos da pandemia na matrícula escolar nos anos de 2020 e 2021. Nessa linha, a pesquisadora explica que a Meta 1 do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) estabelece que até 2016 a pré-escola (4 e 5 anos) deveria estar universalizada e, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos deveriam ser atendidas em creche até 2024. “Tomando como referência o Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação 2020, elaborado pelo Inep em 2018, 35,7% das crianças de 0 a 3 anos frequentavam creche e 93,8% frequentavam creche ou pré-escola no Brasil. Mas é necessário considerar que, quando analisamos estes dados por região ou estados, temos grandes diferenças. A título de exemplo, para a região Norte estes dados correspondem respectivamente a 19,2% e 88%. Com isso quero mostrar que mesmo antes deste grande número de crianças que deixaram a escola entre 2019-2021, não estávamos cumprindo o estabelecido na legislação, no caso, no PNE”, destaca Márcia Jacomini.
A professora da EFLCH lembra que quando são analisados os dados das sinopses estatísticas (2019-2020-2021) verifica-se que na Educação Infantil houve uma diminuição de 142.983 matrículas entre 2019 e 2020 e 510.396 entre 2020 e 2021, isso quando as matrículas deveriam estar aumentando, uma vez que há para ela demanda nesta etapa da educação básica e a Meta 1 do PNE ainda não foi cumprida. “Isso soma 653.379 matrículas a menos que em 2019, sendo 337.882 em creches e 315.497 na pré-escola. É importante dizer que a maior diminuição ocorreu tanto na creche quanto na pré-escola no ano de 2021 em comparação com 2020, respectivamente 234.779 e 275.617 matrículas”, aponta a pesquisadora.
A queda nas matrículas da Educação Infantil mostra em primeiro lugar que, segundo Márcia, nos dois últimos anos não houve avanço no cumprimento da Meta 1 do PNE: “Mas como os dados da série histórica vinha indicando [ela sugere ver relatórios de monitoramento] que o atendimento na Educação Infantil estava crescendo, ainda que num ritmo inferior ao necessário para cumprir a meta e garantir o direito à educação, o que os dados do censo de 2020 e de 2021 em relação aos dados de 2019 revelam é o impacto da pandemia nas matriculas escolares, ou seja, diante do fechamento da escola e da adoção do ensino remoto, muitas famílias deixaram de realizar a matrícula das crianças, por isso a queda no número de matrícula é maior em 2021, quando já estávamos em ensino remoto há pelo menos um ano”.
A pesquisadora diz ainda que é preciso considerar o que significa atividade escolar remota para educação infantil: “Rapidamente as famílias perceberam o papel que elas teriam que desempenhar para garantir que os filhos realizassem o que as escolas estavam orientando, a despeito dos esforços dos professores que foram louváveis. Nesse processo, muitas famílias podem ter desistido de realizar a matrícula das crianças. Soma-se a isso, aquelas que não tinham os equipamentos necessários e o acesso à internet para realizar o chamado ensino remoto”, informa Márcia Jacomini.
A professora da Unifesp, que também desenvolve pesquisa em Política Educacional e Gestão Escolar e é líder do Grupo de Pesquisa Política Educacional e Gestão Escolar (Geppege), ressalta que na matéria publicada pela Agência Brasil há indicação de que a queda de matrículas na educação infantil na rede privada (21,6%) foi mais acentuada que na pública (2,3%), e que isso pode ser compreendido no marco da análise anterior: “A criança não está indo para escola, a família precisa cuidar dela em casa e acompanhar as atividades que a escola solicita. As famílias passaram por dificuldade financeiras, perda de emprego etc. Diante de tudo isso, podem ter decido não realizar a matrícula das crianças, especialmente no ano de 2021. Será interessante e necessário verificar se em 2022 houve migração de alunos do setor privado para o público no Ensino Fundamental e Médio. É bastante provável que isso tenha ocorrido. Na Educação Infantil isso é limitado porque não há vagas. Também será importante verificar se as matrículas de 2022, com o retorno às atividades presenciais, voltaram aos patamares de 2019 ou se tivemos crescimento o que é esperado na Educação Infantil e no Ensino Médio”.
Sobre o tamanho do prejuízo pedagógico para esse contingente de crianças fora das salas de aula, Márcia Jacomini avalia que é difícil dimensionar. “Não compartilho das análises que afirmam que a perda foi de um, dois, três anos. Não acho que se possa medir o processo educativo desta forma. Mas é necessário reconhecer que perdermos muito em termos de aprendizagem e formação, porém, como muitas vezes foi dito tratava-se de preservar a vida, inclusive para ter a oportunidade de aprendizagem e de formação impossibilitadas nos anos entre 2020 e 2022 nos que se seguem. Contudo, para isso será necessário medidas que efetivamente considerem o fato de que houve muitas diferenças de acesso e de apropriação do conteúdo e das atividades que foram desenvolvidos durante o ensino remoto. Os próximos anos letivos em termos de organização do currículo não podem simplesmente coincidir com o ano civil. É importante que as redes de ensino pensem em formas de garantir horários em contraturno para oferecer oportunidades de aprendizagem/formação para aqueles estudantes que durante a pandemia tiveram pouco acesso às atividades escolares, por motivos diversos, especialmente por falta de acesso à internet e equipamentos de tecnologia”, opina a pesquisadora.
Para ela, este pode ser um momento oportuno para repensar a própria escola e a qualidade da educação. “O fechamento das escolas chamou a atenção da sociedade para a importância desta instituição como espaço de formação das novas gerações. Certo entusiasmo inicial em torno do ensino remoto foi perdendo força seja porque excluiu milhares de estudantes, dadas as desigualdades sociais e educacionais do país, ou porque demonstrou-se incapaz de produzir processos educativos/formativos condizentes ao direito à educação”, fala a professora da Unifesp.
Márcia Jacomini discorre também sobre a Meta 2 do PME, que trata da universalização do Ensino Fundamental de 9 anos para a população dos 6 aos 14 anos: “De acordo com o Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação 2020, em 2019, 98,1% da população de 6 a 14 anos frequentava ou havia terminado o Ensino Fundamental de 9 anos, ou seja, esta etapa está quase universalizada. Entre 2019 e 2021 tivemos uma oscilação nas matrículas, aumento de 26.503 em 2020 comparando com 2019 e uma queda de 49.936 em 2021 na comparação com 2020 e de 23.433 em relação ao ano de 2019. Mas estas oscilações que parecem estar relacionadas à pandemia não indicam mudança na dinâmica de matrículas nesta etapa da educação básica”.
Já sobre a Meta 3 do PME, que prevê elevar a taxa líquida de matrícula no Ensino Médio a 85% até 2024, a pesquisadora mostra que em 2019, de acordo com o Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação 2020, a taxa líquida era de 73,1% para o Brasil, mas para a região Norte a taxa era de 65,1%. “É sempre importante considerar as diferenças regionais. Nesta etapa de ensino tivemos uma queda significativa no número de matrículas entre 2019 e 2020, 603.827, e um crescimento de 304.666 em 2021 em relação ao ano de 2019. Apesar da Emenda Constitucional nº 59 de 2009 ter tornado obrigatório o ensino dos quatro aos 17 anos e da expectativa de haver um crescimento nas matrículas do ensino médio isso não estava ocorrendo, conforme pode ser verificado nos dados do Censo Escolar. O aumento em 2020 pode ser expressão da necessária dinâmica de crescimento desta etapa da educação básica, a pergunta que fica é porque as matrículas desta etapa não foram afetadas pela pandemia em 2020? Os estudantes nesta faixa etária se adaptaram melhor ao ensino remoto? A queda em 2021 pode estar relacionada às dificuldades impostas pela pandemia. É comum que os estudantes do Ensino Médio tenham que desenvolver atividades domésticas ou alguma atividade remuneratória para contribuir com a renda familiar o que inviabiliza muitas vezes a continuidade dos estudos. Também é necessário considerar que o ensino remoto pode ter produzido certo desinteresse pelos estudos por parte dos jovens. Para esta faixa etária, o Estado precisa estar bastante atendo acerca dos inúmeros fatores que interferem na escolarização dos jovens, principalmente mediante à crise econômica que leva muitos a abandonarem a escola para realizarem trabalho precarizado como forma de sobrevivência”, analisa Márcia Jacomini.
Por fim, para entender o tamanho do impacto da pandemia na
educação nacional a pesquisadora indica quais questões o Censo Escolar do Inep
não costuma levantar e que seriam importantes para essa finalidade: “O Censo
Escolar não faz levantamento sobre algumas questões, cujo conhecimento seriam
fundamentais para orientar as políticas públicas para educação durante a
pandemia, por exemplo: se os estudantes possuem computador, celulares e acesso
à internet para realização de atividades escolares. Estes equipamentos e o
acesso à internet são fundamentais para a realização do ensino remoto. Se estes
dados fossem coletados no Censo Escolar, eles poderiam contribuir para a
orientação de políticas públicas que garantissem que todos os estudantes
tivessem os insumos básicos necessários para a realização do ensino remoto.
Obviamente que não bastava apenas ter os dados, saber quantos e onde estavam os
estudantes que precisavam de acesso à internet e de computadores/tablet para o
ensino remoto. Seria necessário recursos e decisão política de investir nesta
política social/educacional, mas este conhecimento seria muito útil para a
tomada de decisão e a realização da política pública”, sugere a professora da
Unifesp.
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