Cacique Pequena, a primeira
mulher cacique reconhecida no Brasil que
Líder indígena conquistou demarcação de terra, energia elétrica e uma escola para a aldeia, e duas de suas filhas também se tornaram caciques na aldeia, dividindo com a mãe a liderança no local
Cacique Pequena: 1ª cacique do
Brasil diz que não foi fácil assumir o cargo
Maria de Lourdes da Conceição Alves, conhecida como Cacique Pequena, é considerada a primeira mulher cacique do Brasil. O apelido, contudo, não dá conta do tamanho de suas realizações. Ela também é "guardiã da memória, mestre da cultura, doutora da mata e professora". É assim que se descreve.
De seus quase 77 anos de idade,
27 são dedicados ao comando e à orientação do povo Jenipapo-Kanindé, em
Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza.
Não há registros oficiais, e a
Fundação Nacional do Índio (Funai), procurada pela reportagem, não se
manifestou, mas Pequena é tida pela tradição como a pioneira entre as caciques
mulheres do país desde a sua atuação na luta pela causa indígena nos anos 1990.
Uma de suas principais conquistas
foi a demarcação da terra indígena do seu povo. O processo teve início há mais
de 25 anos e está longe do fim - faltam ainda alguns procedimentos, como a
desintrusão (retirada de ocupantes ilegais), até a aldeia receber a homologação
definitiva, mas representa um grande feito.
"O máximo que eu desejava
antes de eu ir embora, antes de o pai Tupã me levar, é ter a graça de ver o
território do povo Jenipapo-Kanindé desintrusado, registrado, tudo preparado
pros índios que ficarem, e eu ir feliz. É isso que eu desejo muito. Toda noite,
eu peço a Deus", conta.
Para Rute Souza, da etnia Anacé e
doutoranda em Ciências Sociais na Universidade de Salamanca, na Espanha, ter
mulheres caciques é "uma representatividade muito forte no Brasil",
uma vez que esse espaço era naturalmente ocupado por homens, reflexo da instituição
do patriarcado no país.
"Só homem poderia ocupar
esses espaços e, há um tempo atrás, com a cacique Pequena assumindo esse
espaço, foi muito importante para nós mulheres mostrarmos que podemos estar
onde quisermos. É algo muito simbólico ter a cacique Pequena nesse espaço, que
vem contribuindo para outras mulheres ganharem voz", avalia a
pesquisadora.
Segundo Braulina Baniwa, da Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), o movimento feminino dentro das etnias tem crescido bastante nos últimos dez anos e em espaços diferentes.
"Hoje, temos mais mulheres
caciques coordenando territórios, várias coordenadoras em nível nacional que
assumem papel muito importante na discussão do nosso povo. Temos mulheres
universitárias, deputadas e temos anciãs que, dentro do território, trabalham
nesse acolhimento, servindo como referência para essa nova geração de
liderança", afirma.
O IBGE estimou, em 2020, que a
população indígena no país era de 1.108.970 pessoas. Não há levantamento de
quantas lideranças nas aldeias são mulheres. O censo demográfico de 2010
indicou que havia 422.068 (51,6%) homens indígenas e 395.895 mulheres
indígenas.
O início
Em um lugar tradicionalmente
ocupado por homens, Pequena foi escolhida para guiar os caminhos do seu grupo,
hoje com cerca de 400 indígenas, em 1995, três anos após a morte do cacique
anterior.
"O pessoal me elegeu como um
vereador, um prefeito ou um deputado, como um ministro ou senador ou
presidente. Tudo isso passa porque é só por quatro anos, e eu sou [cacique] pra
sempre. Quer dizer que sou a rainha. E, até na minha morte, na minha partida, o
povo ainda vai ficar lembrando", diz a indígena.
Pequena aprendeu a ser cacique no
dia a dia, pois seu antecessor não conseguiu repassar a tempo os ensinamentos.
Quem a preparou, conta ela, foram três entidades: Deus, os encantados e a
natureza. Com esse tripé, a mulher estava firme para lutar pelo território da
sua gente e garantir estrutura para a aldeia.
A luta pelo território
Em 1995, a cacique cearense pegou
um ônibus em direção a Brasília para conversar com o presidente da Funai em uma
marcha a favor da atualização do Estatuto do Índio, publicado em 1973, durante
a ditadura militar. Ela conta ter mirado nos olhos dele e dito:
"Senhor presidente, eu não
vim visitar Brasília a turismo, eu vim a negócio. O senhor 'tá olhando no olho
de uma mulher cacique, que o meu povo botou e, hoje, sou a pessoa à frente
deste povo. Eu quero que o senhor mande seu povo, por favor, lá na aldeia,
fazer estudo dos índios e da mãe terra pra nós sabermos mesmo de verdade o
nosso território".
Dois anos se passaram desde a
conversa até que funcionários da Funai foram à aldeia Jenipapo-Kanindé e
começaram os estudos para realizar a demarcação da terra indígena. Em 1999, o
território foi delimitado: a área da comunidade era de 1.734 hectares
oficialmente. Em 2011, ela foi demarcada. No entanto, ainda faltam os
procedimentos de desintrusão, registro e homologação.
Trabalho que gerou frutos
Durante sua luta, Pequena costumava dizer que queria terra, saúde e educação para o seu povo. Entre idas e vindas com autoridades públicas, a aldeia conseguiu algumas realizações.
Em 1999, além da delimitação, o
povo Jenipapo-Kanindé recebeu uma casa de farinha. Dois anos depois, chegou
energia elétrica. Em 2005, o posto de saúde; e em 2007, um galpão foi
construído, o qual é utilizado para a venda de artesanatos indígenas. Mas a
escola indígena foi, talvez, uma das que mais deram trabalho à Pequena.
"Quase toda semana eu estava
lá na Secretaria da Educação [Seduc]. Eu dizia que queria a escola dos índios.
Se os outros índios ganham, por que a gente não ganha? Acho que eles se
aborreceram tanto de eu estar lá na Seduc, que um dia disseram que iam fazer a
escola", relembra.
Hoje, a escola atende as 130
famílias que moram na aldeia em Aquiraz. No total, são quase 400 indígenas que
vivem no local.
Passagem do cacicado
Pequena tem 16 filhos, 38 netos e
54 bisnetos. Mesmo com a família grande desse jeito, ela fez questão de passar
o cacicado para duas de suas filhas mulheres.
Juliana à esquerda e Jurema à
direita são as novas caciques do povo Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz - Imagem: Fabiane de Paula
Jurema e Juliana agora também
respondem pela comunidade ao lado da mãe, que continua cacique para consulta e
direcionamento. Quando uma das filhas está na aldeia, a outra tenta se
movimentar para além dela politicamente lutando para adquirir mais benefícios
para o seu povo. A mãe garante que está se sentindo muito bem representada
pelas filhas.
"Repassei o meu poder pra
elas duas, que, daquele dia pra frente, elas iam se dispor a trabalhar em
defesa do povo Jenipapo-Kanindé. Só pedi que elas fizessem igual a mim ou
melhor na luta que eu vivi", relembra.
Discriminação de gênero
Alcançar o espaço em que chegou
não foi fácil. A discriminação de gênero, conforme conta a cacique, também está
imersa na população indígena: "Fui bastante discriminada pelos próprios
índios. Não foi por ninguém branco, não. Eles diziam na minha cara que mulher
só servia pra cama e pé de fogão".
"Mulher não pode ser só
isso", discorda. "Mulher vai muito além, ela pode chegar à altura do
homem, não trespassar do homem, mas chegar no ombro do homem e se igualar a
ele".
A trajetória de Pequena conseguiu
romper barreiras e trazer representatividade para as mulheres indígenas.
"Eu fiz o caminho para as
mulheres do Brasil porque, se elas tinham coragem, parecia que não tinham. Elas
não enfrentaram o homem que nem eu enfrentei. Não foi fácil eu, sozinha,
enfrentando mais de mil homens e dizer: 'Eu sou essa pessoa e estou aqui
trabalhando pelo meu povo'. Eles não queriam aceitar, mas tiveram que abaixar a
crista".
Cacique Pequena, a primeira
mulher cacique reconhecida no Brasil - Imagem: Associação das Mulheres Indígenas
Jenipapo-Kanindé
O antes e o agora
Se o cacicado feminino é
relativamente recente, a organização feminina nas aldeias começou ainda no
século 19 - mais precisamente em 1884, com a criação da Associação de Mulheres
Indígenas do Alto Rio Negro, no Amazonas.
Ao longo dos anos, as mulheres
indígenas, através de muita luta, têm conseguido se inserir cada vez em mais
espaços. Quitéria Binga Pankararu, de Pernambuco, por exemplo, foi ativa no
processo da Assembleia Constituinte brasileira. Ela foi uma das lideranças
indígenas que furaram o bloqueio de seguranças no Congresso Nacional, em 1988,
para defender os artigos que garantiam os territórios dos povos originários.
Atualmente, diversas
representações femininas formam a Anmiga, que reúne os indígenas de todos os
biomas do Brasil.
Mulheres da Articulação Nacional
se reuniram em fevereiro na aldeia Jenipapo-Kanindé - Imagem: Anmiga
Para Braulina Baniwa,
co-fundadora da Anmiga, as mulheres sempre estiveram na linha de frente pelo
direito do povo indígena.
"Tanto a cacique Pequena,
como essas outras mulheres começaram a fazer esse movimento. Elas são parte
importante de todos os processos políticos da comunidade, são pilares na
construção de participação de vozes das mulheres", afirma.
Protagonismo feminino
A antropóloga Rute Souza entende
que o pioneirismo de Pequena contribui para "dar voz" às mulheres.
"Só homem poderia ocupar esses espaços e, há um tempo atrás, com a cacique
Pequena assumindo esse espaço, foi muito importante para nós mulheres
mostrarmos que podemos estar onde quisermos. É algo muito simbólico ter a
cacique Pequena nesse espaço, que vem contribuindo para outras mulheres ganharem
voz", avalia a pesquisadora.
A antropóloga destaca que as
mulheres indígenas não só já ocupam vários desses pontos de poder, mas também
vêm ganhando espaços nas universidades e nos parlamentos. Um exemplo é a atual
deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira mulher indígena a ser
eleita para a Câmara.
"As mulheres terem ganhado espaço nesse âmbito social ao qual nos é estruturado a não se inserir é fruto de muita luta das mulheres das comunidades e das aldeias que, por muito tempo, ficaram só no apoio, sem poder ir à luta. É um processo de vitória", afirma.
Da Redação ITN com informações do Sistema Verdes Mares, Cadu Freitas e g1 CE.
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