Douglas de Castro*
Em qualquer relacionamento social o conflito é esperado. No sistema internacional, composto por países dotados de soberania, e, portanto, não passiveis à sujeição ou intervenção feita por outro (salvo algumas raríssimas exceções) estes conflitos devem ser resolvidos pelas vias diplomáticas e judiciais.
Como resultado do final da Segunda Guerra Mundial, os países decidiram que a melhor forma de manter a paz e a segurança seria o fortalecimento das instituições internacionais do direito e multilateralismo. A Organização das Nações Unidas foi criada para assegurar que as negociações entre países tivessem um foro público e mais amplo para que a transparência e possibilidade da formação de alianças pudesse ocorrer.
A estrutura organizacional da ONU prevê em sua Carta o funcionamento de dois grandes órgãos de administração: a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança. O objetivo último dos dois órgãos é o de promover a paz e segurança no mundo.
No caso do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, além da guerra fisicamente na região, há uma guerra de narrativas que ocorre no Conselho de Segurança, sendo que ela levou a Rússia, membro permanente do Conselho, a exercer o direito de veto. Esse direito faz com que não seja aprovada a condenação da Rússia pela invasão à Ucrânia.
O veto pela Rússia inviabiliza a declaração multilateral de ilegalidade, o que traria maior pressão sobre o Presidente Putin e diminuiria o ruído sobre as sanções já impostas à Rússia pelos Estados Unidos e outros países ocidentais. A declaração inclusive colocaria de forma inequívoca a China do lado daqueles que condenam a invasão, considerando que o Presidente Xi vê o campo do multilateralismo da ONU a via apropriada para a resolução do conflito.
No dia 2 de março a Assembleia geral da ONU aprovou por 141 votos a favor, 5 contra e 35 abstenções, uma resolução condenando a invasão da Ucrânia pela Rússia, colocando para esta a necessidade imediata de cessar-fogo e retirada das tropas.
A ONU lançou mão de um expediente constante da Resolução 377 (V) da Assembleia Geral da ONU de 1950 (conhecida como Uniting for Peace), aprovada com a finalidade de contornar o também veto soviético em relação à guerra da Coréia. A Resolução estabelece em seu artigo A (1):
Se o Conselho de Segurança, por falta de unanimidade dos membros permanentes, deixar de exercer sua responsabilidade primária pela manutenção da paz e segurança internacionais em qualquer caso em que pareça haver uma ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, a Assembleia Geral considerará o assunto imediatamente com o objetivo de fazer recomendações apropriadas aos Membros para medidas coletivas. (tradução feita pelo autor)
Em essência, a Resolução descreve a estrutura processual pela qual a Assembleia poderia considerar e fazer recomendações sobre questões de paz e segurança internacionais, desde que três critérios sejam atendidos: (1) falta de unanimidade entre os membros permanentes do Conselho de Segurança; (2) falha do Conselho de Segurança em exercer sua responsabilidade pela paz e segurança internacionais, por causa dessa falta de unanimidade; e (3) a existência de ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão.
Considerando o cenário desde a última quinta-feira (24 de fevereiro), nos parece razoável afirmar que essas condições estavam presentes a ponto da sua aprovação com estrondosa maioria. Vale a pena lembrar que a Corte Internacional de Justiça já se manifestou no sentido da Resolução, ou seja, não restando dúvida quanto a validade do seu conteúdo e forma.
A utilização da Uniting for Peace e de outros dispositivos da Carta deixam claro a responsabilidade da ONU quanto à manutenção da paz e segurança como nunca se viu desde a sua fundação em 1945. A sua criação foi precedida de uma guerra trágica que deixou cicatrizes que até hoje não foram curas, assim, é fundamental invocar o espírito de unidade e cooperação presente na sua fundação para colocar um basta nesta irracionalidade iniciada pela Rússia.
A aprovação da Resolução neste dia 2 de março aponta ainda para o déficit democrático que se observa no Conselho de Segurança, que em razão do direito de veto, gera um monopólio das questões de segurança internacional nas mãos de somente cinco países: Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido e China. A complexidade desde o final da Segunda Guerra Mundial alterou e diversificou os cenários de segurança e paz, incorporando outras variáveis que não podem ser desprezadas nas decisões do Conselho.
No entanto, fica a pergunta: quão efetiva é a Resolução em termos de fazer cessar o conflito? A resposta não é simples como querem fazer crer alguns analistas, apontando para a pouca efetividade da Resolução caso a Rússia não ceda. Isso pode ser verdade somente até a página dois.
A Rússia pode até continuar com o que ela chama de conflito (ela evita chamar de guerra para não aportar carga normativa altíssima à violência cometida), mas terá que arcar com as consequências das sanções, que a partir da Resolução se fortalecem e são legitimadas. Até quando o povo russo suportará os altos custos de uma guerra?
Há um ponto de reflexão que acho importante ser feito é no sentido de atribuir as responsabilidades por este conflito, ainda que com a Resolução aprovada. Sem dúvida a responsabilidade de Putin é inegável e direta considerando que ele vem arquitetando e deflagou o conflito. No entanto, devemos olhar também para a postura dos Estados Unidos, que representado pela OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), comanda uma expansão de aparatos de segurança para o leste na Europa. Esta expansão teve a foça de gerar uma espiral de insegurança que acirrou a paranoia de Putin em uma região já marcada pelas tensões históricas.
Além da Resolução como uma forma de legitimar as ações contra a Rússia, penso que a China terá um papel fundamental e complementar à Resolução.
Embora ela não concorde com a aplicação das sanções contra a Rússia, ela tem manifestado a sua posição de que o conflito deve cessar. Isso ficou claro com as intervenções diplomáticas do país na semana passada e a sua abstenção na votação da Resolução. Ao se manter em uma postura de defesa das negociações na ONU e a não aplicação de sanções unilaterais pelos países, a China se qualificou como uma mediadora em potencial do conflito por gozar de certo nível de confiança tanto da Rússia quanto da Ucrânia.
Não nos enganemos, pois, ela possui seus próprios interesses em que o conflito seja resolvido, sendo o principal deles os efeitos negativos que o embate trará para a economia mundial. Alguns analistas acham que é por conta de Taiwan, o que penso não ser o caso, pois para a China a manutenção do crescimento econômico, especialmente em um período pós-covid, é fundamental para a continuidade de seus planos de longo-prazo.
De toda sorte, continuo ecoando os versos da música de Edwin
Starr: “War...What is it good for? Absolutely nothing!” (Guerra…Para que serve?
Para absolutamente nada!)
*Douglas de Castro é Professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de Lanzhou (China)
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