A espécie de ave, que só
ocorre numa pequena localidade no litoral do estado do Rio de Janeiro, segue
vulnerável à extinção, com um habitat desprotegido e cada vez mais pressionado
pela expansão urbana
Por mais de um século, o
pequeno pássaro formigueiro-de-cabeça-negra, descrito pela primeira vez em
1852, desapareceu. Um último esforço de expedição para tentar encontrá-lo foi
feito nos anos 80 e percorreu regiões do estado do Rio de Janeiro como o
município de Nova Friburgo, que até então era o local onde acreditava-se que a
espécie vivia, mas não se viu, nem ouviu nenhum pio do formigueiro. A verdade é
que se sabia muito pouco à época sobre este pássaro, muito menos como era o seu
canto, já que todas as informações se baseavam em exemplares mortos, comprados
ou coletados por naturalistas e colecionadores. Foi com muita surpresa – e
grandes doses de incredulidade – que a espécie foi reencontrada, em 1987, num
local diferente do esperado: o litoral fluminense, mais especificamente em uma
zona entre os municípios de Angra dos Reis e Paraty. Nos 33 anos que se passaram
desde então, a comoção pela sua redescoberta não se transformou em ações
concretas de conservação, e hoje, com o avanço desordenado da urbanização,
pesquisadores alertam que algo precisa ser feito para garantir a sobrevivência
do formigueiro-de-cabeça-negra.
Primeiro, cabe apresentá-lo
melhor. O formigueiro-de-cabeça-negra (Formicivora erythronotos) é um pássaro
pequeno, mede cerca de 11 centímetros – menor que uma caneta. Os machos
apresentam uma coloração avermelhada nas costas em meio ao corpo negro, o que
lhes rendeu o nome, que significa “devorador de formigas com as costas
vermelhas”, uma referência também a sua preferência de cardápio.
A espécie vive em matas secundárias
como capoeiras, ambientes de vegetação mais arbustiva, ou arbóreas em baixadas
costeiras úmidas. Essa característica por um lado garante uma maior
adaptabilidade do formigueiro a áreas antropizadas, como plantios abandonados,
por outro lado, as florestas de baixadas do estado do Rio, que outrora também
poderiam abrigar a espécie, foram quase todas devastadas.
“A região da Costa Verde –
Angra dos Reis, Mangaratiba e Paraty – só foi devassada mesmo a partir dos anos
70, quando construíram a Rio-Santos. Havia uma pressão pequena sobre a
vegetação. E a redescoberta [do formigueiro] foi 15 anos depois disso. Já o
contrário não, se a gente pegar a região da capital até o norte do estado,
todas as baixadas, que seriam o habitat esperado para o formigueiro, foram
detonadas há muito tempo, mais de 200 anos. Sobrou muita pouca mata de baixada,
fragmentos. Enquanto na Costa Verde, a mata de baixada se salvou até os anos
70”, conta Fernando Pacheco, o ornitólogo responsável pela redescoberta do
formigueiro-de-cabeça-negra, em 1987.
O rio Mambucaba marca a divisa
entre os municípios de Angra dos Reis e Paraty, na região fluminense conhecida
como Costa Verde. Mais ao leste, num raio de cerca de 30 quilômetros e mais
próximo da cidade de Angra, está a região do Ariró. De acordo com o Livro
Vermelho da Fauna Ameaçada (Volume II – Aves), cerca de 90% da população total
do formigueiro estaria concentrada nessas duas localidades: o vale do Mambucaba
e a baixada do Ariró.
Apesar de aparecer apenas como
Em Perigo na Lista Vermelha da União Internacional pela Conservação da Natureza
(IUCN), na lista nacional organizada pelo Plano de Ação Nacional (PAN) Aves da
Mata Atlântica, o formigueiro-de-cabeça-negra é considerado Criticamente
Ameaçado, a categoria mais severa antes da extinção na natureza.
A ornitóloga Maria Alice dos
Santos Alves, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
faz parte do Grupo de Assessoramento Técnico do PAN e explica que a
classificação crítica se dá pelo declínio populacional da espécie. “Estima-se que
não existam mais que 250 indivíduos maduros na natureza”, aponta a ornitóloga.
“Além de poucos indivíduos, provavelmente estão concentrados em uma única
subpopulação. Além disso, está ocorrendo perda do hábitat na região para, por
exemplo, expansão urbana, empreendimentos turísticos, pastagens e
monoculturas”, completa.
O habitat do
formigueiro-de-cabeça-negra está sendo pressionado pela ocupação desordenada.
Foto: Marco Silva
“Embora esta espécie ocorra em
áreas de floresta secundária e em regeneração, aparentemente não se mostrando
exigente no uso do hábitat, trata-se de uma espécie rara e com distribuição
muito restrita, sendo endêmica de floresta de baixada litorânea da Mata
Atlântica, em contato com áreas de restinga arbórea e mangue, evitando entrar
em florestas densas ou pouco perturbadas. Suas exigências ecológicas não foram
suficientemente estudadas, o que dificulta direcionar ações de conservação.
Pouco se conhece sobre a biologia e ecologia desta ave, que se limita
principalmente à pesquisa sobre sua reprodução por pesquisadores da UFRJ,
realizada há cerca de 20 anos”, explica Maria Alice.
De acordo com ela, levantar
dados sobre o formigueiro é o primeiro passo para construir as melhores
estratégias de conservação e é uma das ações do Plano de Ação Nacional, cujo
ciclo atual se encerra em 2022. “Para esta ação, está sendo feita uma
amostragem expedita para realizar uma modelagem, de forma a indicar potenciais
áreas de ocorrência do formigueiro-de-cabeça-negra, o que pode ajudar a
identificar esses locais na área de distribuição da ave. Com o conhecimento
detalhado da área de ocorrência da ave e consequentemente estimativas de
tamanho/densidade populacionais, poderemos chegar a uma definição mais precisa
do status da espécie e direcionar ações que possam ser mais efetivas para a sua
conservação”, conta.
O segundo passo seria garantir
a proteção do habitat do pássaro. Próxima da área de ocorrência do formigueiro
está o Parque Nacional da Serra da Bocaina, mas não há registros da ave dentro
da unidade de conservação de fato. Maria Alice aponta que uma solução em
potencial seria realizar a delimitação continental precisa dos limites da
Estação Ecológica de Tamoios, o que poderia abranger áreas de ocorrência da
espécie.
“Efetivamente esta ave não tem
praticamente nenhuma unidade de conservação de proteção integral, tanto no
nível federal quanto estadual, que contemple toda ou a maior parte da sua área
de ocorrência”, afirma Maria Alice.
Outra área protegida vizinha é
o Parque Estadual do Cunhambebe, gerido pelo Instituto Estadual do Ambiente
(Inea-RJ). “O Parque Estadual do Cunhambebe, por exemplo, desde 2008 protege
legalmente uma grande parte da Costa Verde, mas ironicamente seu contorno
deixou de fora as áreas conhecidas de ocorrência do formigueiro-de-cabeça-negra.
Provavelmente este Parque focou nos maciços de floresta ombrófila preservados,
que embora seja um ambiente importantíssimo para a biodiversidade em geral, é
evitado pelo formigueiro-de-cabeça-negra. Seria importante em algum momento rever
os limites deste Parque estadual, de forma a ampliá-lo em locais que possam
abranger as áreas de ocorrência dessa espécie”, explica a ornitóloga.
“Uma importante medida
adicional seria incentivar proprietários locais a criarem RPPNs nos trechos em
que essa ave está presente”, acrescenta, em referência às Reservas Particulares
do Patrimônio Natural (RPPNs), unidades de conservação privadas e de proteção
integral.
Seja por meio da criação de
novas áreas protegidas ou da ampliação e delimitação das existentes, os
pesquisadores envolvidos na conservação do formigueiro-de-cabeça-negra são
unânimes: é preciso proteger o território de ocorrência da espécie para
garantir sua sobrevivência.
“Essa é uma ave que gosta de
ambientes sucessionais, ela fica no sub-bosque e se alimenta até 2 metros de
altura. Ela precisa dessa vegetação arbustiva, a capoeira. E nesse aspecto, ela
“dá sorte”, porque não depende de florestas maduras, que levam 100 anos para se
formar. E hoje em dia ela está só ali. Não existe de fato uma área de
preservação ali onde ela ocorre, que seja de proteção integral e uso restrito”,
aponta Pacheco.
De acordo com dados do IBGE,
em 1970, o distrito de Mambucaba tinha uma população de 880 habitantes.
Conforme o Censo de 2010 do IBGE, o número no distrito pulou para mais de 17,7
mil moradores. Já a população do município de Angra dos Reis é estimada em
207.044 pessoas.
“Essa região, o distrito de
Mambucaba, está crescendo e essa expansão urbana está entrando nas áreas que
eram de ocupação dessa espécie. O formigueiro ocorre principalmente no vale do
rio Mambucaba, em ambas as margens, de um lado é Paraty e do outro é Angra. E
nesse lado de Angra, ele está perdendo a cada ano uma área grande com esse
crescimento desordenado de Mambucaba. No passado, quando eu conheci essa região
e redescobri a espécie, metade do distrito era a vila dos funcionários da usina
nuclear. Hoje em dia, Mambucaba é enorme. Hoje a vila de funcionários deve ser
5% da área urbana de Mambucaba”, ressalta.
Com informações da www.oeco.org.br